Tempos cruzados em espaços misturados
Somos parecidos e opostos. Uma geração nos distancia. David é primo que poderia ser filho, ou sobrinho. Cumpriu a transição integral entre infância e maturidade, encontrou por meio do ensinamento bilingue a sua aptidão em selecionar um repertório responsável para o seu trajeto de vida. É a segunda geração de uma viagem iniciada na imponderabilidade quanto a futuro e destino, e que hoje, quase sessenta anos depois, se vale de David por representante simbólico para concluir o rito do retorno, do reencontro da geografia pátria; da raiz escondida, mas nunca esquecida, porque foi firmemente plantada.
Nossos processos de formação foram similares, fomos “iniciados” de berço. Nossas disposições são divergentes. Eu fui um aculturado, David é um assimilado. Posto em ambiente estrangeiro no exato instante em que tudo é aprendizado e elemento de consolidação de valores, após uma viagem cujo produto foi a condensação de duas culturas em fase de reconhecimento mútuo, meu mundo encharcou-se de contrastes entre o “dentro” e o “fora”, a começar pelos idiomas e o próprio mobiliário. Estávamos, a familia, em plena etapa de ocupação territorial e aquisição de destrezas, e ao mesmo tempo, individualmente, absorvendo e processando, cada um ao seu modo, as irradiações de uma nova cultura que nos atingia em cheio, a cada vez que íamos da porta da rua para fora.
Fomos a geração que demorou entre vinte e trinta anos para nos aculturarmos, e entre nós houve sempre quem lutasse pela (sobre)vivência dos nossos próprios códigos culturais, um núcleo resistente às transições por necessidades circunstanciais, para que um dia houvesse um David. Peculiar e fiel à sua característica, assimilou organicamente uma brasilidade instrinsecamente ligada às expressões e gestualidades chinesas. Existem Alexandre, Mary, Andrea, Emiliano, Daniela, imersos na multinacionalidade, sempre com preponderância pendendo para um lado ou outro. Em David, tudo se mescla e se organiza, e nesse ponto é que encontro o meu caminho ao encontro dele, porque, em mim, que também mesclei, mas desorganizei, não há como executar a operação harmoniosa e “natural” de me enxergar a mim mesmo e ao outro como uma coisa só, e ao mesmo como o diferente. A transição entre o brasileiro nato e o chinês nato está concretizado em David. Ele encontrou um ponto de equilíbrio entre o Oriente e o Ocidente, um modo assimilado, digerido e processado, de lidar com geografias e tempos contraditórios, sem abdicar de seu próprio direito às sensações, à observação.
Em comum entre nós, a compulsão em observar, analisar, estranhar. “Condenados” em sermos estrangeiros, em que cada local e cultura são reconhecíveis, e ao mesmo tempo forasteiros, nossas disposições confluem para uma espécie de deglutição permanente, e muito de inadequação permanente, que eu transformo em negação, enquanto David transforma em adaptação analítica. Em comum entre nós, o lastro do núcleo familiar, a fé (mesmo às vezes lutando contra ela), a confiança mútua, a agregação; sólida raiz comum enterrada dentro de nós por pessoas intuitivamente sábias. E a sabedoria de David é a de extrair o momento do conjunto, a preciosidade do supérfluo, sem perder de vista o valor do essencial.
Joie de vivre. Longa vida a todos nós.
Liu SaiYam